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Programa Transcidadania possibilita trabalho, educação e inclusão para trans

São Paulo – Bianca Araújo, 39, perde o chão toda vez que contempla a tela “Mulher com chapéu Panamá”, obra de Di Cavalcanti (1897-1976) exposta no acervo permanente da Pinacoteca, museu no centro da capital paulista.

O retrato da década de 1940 com as pinceladas características do pintor modernista mostra uma mulher supermaquiada e muito sensual que parece estar sempre à espera de alguém. “Por 18 anos eu fui essa mulher do quadro. Tinha o mesmo olhar triste e profundo dela porque levava uma vida muito difícil e louca”, conta.

Desde pequena, Bianca já se sabia gay. Aos 17 anos saiu de casa para viver uma vida de travesti. Hoje, se reconhece como mulher trans. Ela diz que metade de sua vida foi consumida na prostituição, “o destino quase obrigatório para os transgêneros no Brasil.”

A cearense se prostituiu na Europa, foi cafetina, chegou a ser detida em operações da polícia e pensou que não passaria dos 30 anos. “Mas sabotei meu próprio prognóstico”, diz ela.

Há quase um ano, Bianca largou as ruas para proteger a “Mulher com chapéu Panamá”, telas de Volpi,  Tarsila do Amaral, Candido Portinari e tudo mais que virar item de exposição na Pinacoteca.

A nova função está inscrita no crachá que Bianca carrega com muito orgulho no peito: atendente.

“É a primeira vez que alguém assina a minha carteira de trabalho na vida”, diz, emocionada.

Bianca Araújo, 39, ao lado de seu quadro favorito, “Mulher com chapéu Panamá”, Di Cavalcanti. (Eduardo Kanapp – Folhapress)

O atendente é peça-chave no funcionamento da Pinacoteca. O profissional da área circula pelas salas das exposições, zela pelo estado de conservação das obras e presta informações diretamente aos visitantes.

“O visitante não pode tocar nas obras e nem entrar com água na exposição”, enumera a sempre atenta Bianca enquanto conversa com a reportagem da Folha.

Bianca não está sozinha na tarefa de lidar com as 550 mil pessoas que visitam a Pinacoteca por ano. Ela e mais quatro colegas trans (duas mulheres e dois homens) integram o primeiro grupo de funcionários transgêneros na história da Pinacoteca, um dos espaços de maior prestígio das artes plásticas no país.

Homem trans, Thomaz de Jesus da Silva, 23, diz que antes de chegar à instituição, pensou que passaria a vida inteira lavando carros, a única função que sempre esteve a mão quando o dinheiro minguava.

“Eu nem sabia o que era a Pinacoteca. Passava sempre na frente [do museu] e pensava: isso aqui deve ser um lugar que não é para mim”, diz ele.

O último emprego com carteira assinada, diz Thomaz, foi em um callcenter, um setor conhecido por ser a porta de entrada de muitos LGBTs no mercado de trabalho.

“Antes era eu, de um lado, e o cliente, do outro. Mas ele não me via. Agora eu sou visto no trabalho pelas pessoas e isso faz toda a diferença na minha autoestima“, afirma.

Antes de fazer parte do quadro de funcionários da Pinacoteca, o grupo bateu à porta de um programa público que busca inserir pessoas trans no mercado de trabalho em São Paulo.

Para se inscrever no programa, os trans precisam comprovar que estão em situação de vulnerabilidade social —isso significa não ter emprego ou nenhuma renda fixa.

O Transcidadania é desenvolvido pela prefeitura desde 2008. A iniciativa ganhou força na gestão de Fernando Haddad (PT) e foi mantida pela administração dos tucanos João Doria e Bruno Covas.

O advogado Marcelo Gallego, assessor técnico do programa, diz que os atendidos vivem em uma situação de extrema pobreza. “A gente está falando de pessoas que foram expulsas de casa muito jovens e não conseguiram estudar na idade ideal e, portanto, não têm uma carreira e sobrevivem muitas vezes da prostituição. A maioria está em situação de rua, tem doenças crônicas e vício em drogas”, afirma Gallego.

Ashley Any Gonçalves, 27, outra mulher trans que atua como atendente na Pinacoteca, diz que só voltou à escola quando entrou no Transcidadania. Ela havia parado os estudos na oitava série porque era alvo constante de bullying entre os colegas.

A hora da chamada era terrível porque eu tinha um nome e respondia presença em outro. Era tanta chacota que eu desisti”, diz.

Thomaz de Jesus Silva, 22, cuida de obras da Pinacoteca. (Eduardo Knapp)

O programa mantém uma parceria com 50 escolas da capital paulista que são especializadas em receber pessoas trans –um fator, segundo especialistas, que garante a permanência desse público em sala de aula.

A principal meta do programa é justamente elevar o grau de escolaridade dos beneficiados e paralelamente capacitá-los para a disputa de uma vaga no já concorrido mundo do trabalho.

Segundo dados da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, das 80 pessoas trans encaminhadas para uma entrevista de emprego pelos canais do Transcidadania, 24 foram contratadas em 2017. 

Neste ano, outras 71 beneficiadas chegaram às entrevistas, mas a pasta diz não saber quantas foram empregadas “porque depende de dados encaminhados pelas empresas contratantes”, o que não havia ocorrido até a publicação desta reportagem. A Pinacoteca foi a única instituição que comunicou a contratação de participantes do projeto neste ano.

O Transcidadania ofertou neste ano 240 vagas —só na fila de espera existem 167 pessoas. Tanta procura porque quem é selecionado, além de receber muitos treinamentos, ganha uma bolsa mensal de R$ 1.001 ao longo de dois anos (tempo máximo de permanência no programa). 

Em contrapartida, o beneficiado precisa voltar a estudar e cumprir seis horas de atividades diárias, como cursos técnicos e de línguas estrangeiras, em um dos quatro centros de Cidadania LGBT espalhados pelas zonas norte, leste, sul e no centro da capital paulista.

É na unidade da região central Luiz Carlos Ruas, nome que homenageia o ambulante morto no Natal de 2016 após defender de agressões uma travesti no metrô, que Sandra Ribeiro da Fonseca, 63, busca capacitação desde novembro nos treinamentos do Transcidadania para encerrar uma vida de 45 anos na prostituição e seguir o mesmo destino de seus colegas da Pinacoteca.

“Sobrevivi à ditadura, apanhei da polícia e fui presa muitas vezes nos anos de 1970 só porque era travesti. Estou muito cansada dessa vida de programas que exige uma disposição e uma saúde que eu já não tenho. Eu quero é a minha estabilidade em um emprego com carteira assinada”, conta a travesti.

Sandra corre. Ela terá dois anos para concluir o nível fundamental e ficar em pé de igualdade com suas concorrentes por uma vaga nas áreas de camareira, ajudante de cozinha e auxiliar de serviços gerais. “É o meu sonho”.

Para a articuladora social Laura Prevato, 34, também mulher trans e que lida com o público do Transcidadania, as empresas precisam mudar o que ela chama de “cultura do profissional pronto”.

As empresas querem que as pessoas trans cheguem lá com todas as bases e tendo que arcar com as formalidades do mundo do trabalho de cara. Só que os gestores não levam em conta que são pessoas que cresceram à margem disso e que o processo leva tempo”, diz. 

Para Gallego, os empresários não podem criar programas de inclusão de funcionários trans com dúvidas comportamentais de menor importância. 

Eles [executivos] sempre perguntam qual a roupa os trans vão usar no ambiente de trabalho. Isso mostra como estamos distantes“, diz.

Na Pinacoteca, a falta de currículos de pessoas trans nos processos de seleção fez a instituição se mexer, conta Pedro Sampaio, o líder do setor de atendimento do museu. “A gente sempre se perguntava: porque não chega nenhum currículo de uma pessoa trans?”

O museu foi atrás do Transcidadania e abriu seu processo de recrutamento e seleção ao público do programa. Com os trans selecionados, o passo seguinte, diz Sampaio, foi sensibilizar os demais funcionários. “Passamos por um momento de formação, mas deixamos claro que estávamos contratando profissionais, independentemente do gênero”, diz.

A chegada de Bianca, Thomaz, Ashley, Dêmily e Yago rendeu à Pinacoteca a conquista do selo de Direitos Humanos neste ano, uma láurea concedida pela prefeitura às empresas e instituições que implementam políticas inclusivas em diferentes áreas. 

Apesar da carteira assinada, o desafio dos cinco trans ainda não terminou. Ainda falta a conquista da vaga definitiva. Até agora, apenas Yago Franco, 33, que trabalha no setor de segurança da Pinacoteca, foi efetivado. Os demais continuam em contratos temporários.

Para Dêmily Nóbrega, 50, uma das atendentes e estudante de pedagogia, o desafio do museu é grande. “A cota pela cota é demagogia pura. Incluir é bem diferente de integrar. Sei que eles estão se esforçando, mas é preciso uma política pública clara e contínua”, afirma.

Fonte: Folha.

*As opiniões veiculadas nos artigos de colunistas e membros não refletem necessariamente a opinião do GREEN BUSINESS POST.

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Lenah Sakai

Ex-atleta, green fellow (vegetariana, minimalista), trabalhando duro para tornar as organizações, os maiores impactadores do planeta, mais responsáveis. Formada em administração pela PUC-SP, há +10 anos atua em negócios e sustentabilidade. Fundadora do Green Business Post, co-fundadora da Ignitions Inc., do movimento Cultura Empreendedora, do DIRIAS, 1ª associação de direito digital do Brasil e da ABICANN, 1ª associação das indústrias de cannabis do Brasil. Hoje é gestora de uma rede de 5 milhões de pessoas do ecossistema empreendedor nacional e internacional.

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