A Missão dos Relatórios de Sustentabilidade: A GRI e o caso da Vale

Penso ser desnecessário comentar sobre a recente tragédia causada pela Vale em Brumadinho, a qual resultou até o momento em uma centena de mortos.

O que se questiona aqui é a validade, efetividade ou mesmo a conexão com a realidade dos relatórios de sustentabilidade corporativos, no caso a GRI, da qual a Vale ostenta o selo Gold.

Mas antes se faz necessária uma breve revisão histórica dos eventos.

Ainda em 2013 a Samarco, joint venture entre a Vale e BHP, tinha conhecimento sobre um relatório alertando quanto à problemas na baragem em Bento Rodrigues, o qual indicava o risco da  barragem.

Em 2015 o risco se converteu em realidade com o rompimento da barragem resultando na morte de 15 pessoas, a destruição do Rio Doce e a contaminação da região costeira. Até o momento os sobreviventes da tragédia ainda sofrem com o descaso da empresa em assumir sua responsabilidade indenizatória. O prévio relatório de 2013 apontando o risco da barragem foi convenientemente rebatido pela BHP

A consequência direta do “acidente” foi a reavaliação das barragens existentes e em 2016, em seu próprio GRI, a Vale aponta que (pág. 38):

“Em junho, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais ordenou a suspensão de parte das atividades das minas de Jangada e Feijão em razão de alegados impactos em cavidades localizadas na área. Contra a medida, a Vale obteve decisão liminar que autorizou as atividades das minas.”

Como sabemos em 2019 a barragem I da mina do Feijão se rompe, resultando na segunda tragédia causada pela companhia.

Não vou questionar a relação dos impactos apontados pela Secretaria do Meio Ambiente com o rompimento, pois não tenho competência para tal análise, mas o que se questiona é o sistema de relato de sustentabilidade em sí.

De acordo com a GRI sua missão é “empoderar as decisões que criem benefícios sociais, ambientais e econômicos para todos.

Questionei a GRI em seu grupo de discussão no LinkedIn (a opção por esta via foi tornar pública a discussão) a qualificação da Vale como membro padrão ouro, a seriedade de seu relatório de sustentabilidade, bem como o papel desempenhado pelos auditores que chancelam o relatório e falham em ver uma tragédia anunciada.

Recebi como resposta de seu Diretor de Assuntos Externos:

“Antes de mais nada, estamos profundamente preocupados e incomodados com os acontecimentos que se desdobram no Brasil e ampliamos nossas condolências aos afetados por essa tragédia.

Em resposta à sua pergunta, podemos confirmar que a Vale S.A é um membro da Comunidade GRI e seus relatórios de sustentabilidade estão escritos de acordo com os Padrões de Relatório de Sustentabilidade da GRI. No entanto, é importante observar que a associação não é um selo de aprovação da GRI nem implica que o relatório da empresa membro tenha sido assegurado pela GRI.

A GRI se reserva o direito de revisar ou encerrar a participação de qualquer empresa que se envolver em atividades contrárias à missão e aos valores da GRI. Aguardaremos a avaliação completa do evento pelos órgãos competentes do governo brasileiro e determinaremos ainda o status da associação para a Vale SA.”

Bem, vamos analisar a resposta.

“… seus relatórios de sustentabilidade estão escritos de acordo com os Padrões de Relatório de Sustentabilidade da GRI. No entanto, é importante observar que a associação não é um selo de aprovação da GRI nem implica que o relatório da empresa membro tenha sido assegurado pela GRI.”

O que se pode verificar desta afirmação é que a GRI avalia apenas se o relatório está dentro de seus padrões, não realizando nenhum julgamento de valor sobre a real efetividade da política de sustentabilidade da corporação, mantendo-se neutra quanto a isso.

No entanto, seguindo a resposta temos que:

“A GRI se reserva o direito de revisar ou encerrar a participação de qualquer empresa que se envolver em atividades contrárias à missão e aos valores da GRI.”

Relembrando que a missão da GRI é criar benefícios para todos e considerando que no relatório de 2016 foi relatada a liminar da Vale para derrubar a ação da Secretaria do Meio Ambiente, deixando claro o interesse em seu benefício econômico em detrimento do social, do ambiental e sobre tudo da sociedade, questiona-se se a que se refere o “todo” da missão do GRI? A sociedade está inclusa ou apenas seus investidores?

Finalmente:

“Aguardaremos a avaliação completa do evento pelos órgãos competentes do governo brasileiro e determinaremos ainda o status da associação para a Vale SA”.

Desta forma lava-se as mãos ao deixar sua decisão quanto à associação da empresa vinculada à decisão do governo. Os mortos pelo “acidente” aparentemente não são argumento suficiente para que a GRI de forma isenta e independente, com base em sua missão, decida sobre a associação da Vale.

Considerando a reincidência da empresa neste exato tipo de catástrofe, e sua presença até o momento como associada da GRI, não há novidades aqui.

Estando em 2016, em seu relatório, exposto de forma tão gritante (algo que usualmente está nas entrelinhas dos relatórios de sustentabilidade) a posição de seus interesses econômicos sobre os demais, por que sua associação à GRI não foi revista na época, já que está (?) flagrantemente em oposição à missão da GRI?

Por um lado a empresa atendeu os padrões de relato da GRI, por outro atuou de forma oposta à missão da mesma.

Qual seria então o propósito dos próprios relatórios de sustentabilidade se sua aprovação se baseia unicamente no que é relatado e não em seus resultados, não apenas na esfera econômica?

A Vale infelizmente não é a única a apresentar tais não conformidades entre o relatado e o realizado, e este problema ocorre também em outros sistemas de relato, mas nas demais os problemas devem ser procurados nas entrelinhas dos relatórios e não são expostos de forma tão clara como no relatório de 2016 da Vale, o que aumenta o questionamento sobre a efetividade do relato para a realização pela empresa da missão proposta pela GRI.

Originalmente publicado em 01/02/2019 em Greenwashing Debunkers Club. Até o presente a GRI não se posicionou quanto à manutenção da Vale em seu quadro de Gold Members.

*As opiniões veiculadas nos artigos de colunistas e membros não refletem necessariamente a opinião do GREEN BUSINESS POST.

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Julio Campos

Oceanógrafo com habilitação em Desenvolvimento Costeiro; Mestre em Ecologia com foco em Hidrobiologia; Doutor em Planejamento Energético com ênfase em Economia Ambiental; Estágio Prodoc em Engenharia Ambiental direcionado para Análise de Impactos Offshore da Exploração de Petróleo. Autor de diversos artigos e livros sobre sustentabilidade; Peer reviewer para periódicos nacionais e internacionais no tema. Coordenou o desenvolvimento e execução de projetos sobre sustentabilidade, em suas três esferas, e inovação em tecnologias limpas, tecnologias sociais e desenvolvimento econômico de cooperativas na cadeia de reciclagem. Foi consultor ad-hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia para a avaliação da viabilidade de projetos. Colaborador do Núcleo de Estudos em Contabilidade e Meio Ambiente na FEA/USP, atualmente utiliza a análise de sistemas complexos no estudo das causas da perda de sustentabilidade, identificando como estas podem prejudicar as ações de sustentabilidade propostas para o combate aos problemas ambientais e sociais, sobretudo no setor corporativo.

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